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Decreto prevendo contratação de egressos do sistema prisional é inconstitucional

Por Pervical Maricato, vice-presidente jurídico da Cebrasse

Segundo o Decreto 9.450/2018,  promulgado pelo Governo Federal, ou melhor, pela  Ministra Carmem Lucia, do STF, que exerceu a Presidência da República por uns poucos dias, empresas que tem contrato com a União ou que pretendem participar de licitações doravante,  deverão empregar egressos do sistema penitenciário, sendo  3% das vagas quando o contrato demandar 200 funcionários ou menos; 4% das vagas, no caso de 200 a 500 funcionários; 5% das vagas, no caso de 501 a 1.000 funcionários; e 6% quando o contrato exigir a contratação de mais de 1.000 funcionários.  O objetivo seria a ressocialização de presos e sua integração à economia de mercado.

O decreto fere os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade

O decreto em si mesmo já é abusivo, interferência abusiva do Estado. Tendo em vista que as empresas com mais de cem funcionários já são obrigadas a contratar quotas de deficientes e de aprendizes, 10% no total, as que irão participar de licitações teriam que completar 16% de seu pessoal para atender legislações. Trata-se de um contingente imenso, tendo em vista a dinâmica interna que o mercado exige das empresas para a simples sobrevivência: equipes competentes, harmônicas, trabalhadores preparados, métodos simples de gestão, evitar custos, burocracia etc.

Configura-se assim brutal violação do princípio da proporcionalidade, da razoabilidade, da interferência do Estado na inciativa privada, na liberdade econômica, na economia de mercado.

De fato, consideradas isoladamente essas quotas poderiam ser até positivas, incentivaria empresas a cumprir sua função de responsabilidade social, mas somadas, tendo em vista as quotas expressivas de cada uma, tornam-se inviáveis, levam a empresa a correr risco, comprometer suas margens e no limite, perder competitividade e quebrar, ou  trabalhar engessadas, com excesso de mão de obra, pois nem sempre os trabalhadores serão adequados à prestação do serviço, pondo a perder tudo de bom que podem gerar: tributos, empregos, bens e serviços etc. Fica claro que a Ministra e quem a ajudou na elaboração do Decreto não tem a mínima ideia do dia a dia de uma empresa.

Decreto é ilegal

Além de inconstitucional, o Decreto é ilegal, ou seja, não corresponde à lei que diz regulamentar. De fato, na lei diz que as empresas devem contratar ex presidiários e o Decreto fala em todo tipo de preso, independente da pena estar cumprida ou não.

Aumento de custos

Considere-se ainda os custos dessas normas. Está claro no decreto que será preciso mais funcionários do departamento pessoal para lidar com os múltiplos documentos e exigências para cumprimento da lei, atendimento a fiscalizações, processos administrativos, comprovantes, comunicados de entrada e de saída, faltas ao serviço etc. E também com custos, cabe ao Poder Público, aos juízes penais principalmente, cumprir outro tanto, o que, evidentemente, não terão condições de fazer, pois mal conseguem se desincumbir das tarefas que já tem. São comuns as matéria mostrando o atraso do andamento dos processos na área, as milhares de pessoas que estão presas, quando já tem condições de estar na rua. Quem sabe o Estado decida contratar mais uma multidão de funcionários públicos para cuidar dessas funções, expedir autorizações, selecionar egressos que tenham cumprido um sexto da pena, comprovem aptidão, disciplina e responsabilidade e uma dezena de outras condições.

Tanto os custos da iniciativa privada, que no caso prestarão serviços a União,  como os que está tem que assumir, cairão, por óbvio, na conta do contribuinte, mais uma vez sacrificado pela incompetência estatal.

Violação do principio da equidade e isonomia na concorrência

Como as empresas menores, já inclusas no SIMPLES,  não têm que ter deficientes, aprendizes, agora poderão não ter ou ter menos egressos do sistema penitenciário, irão se agravar mais ainda as diferenças de preços ofertados no sistema de licitação. Os custos das empresas maiores, as que mais emprega, geralmente com maior capacidade operacional, não terão como concorrer. Uma empresa com mil funcionários terá que ter 160 no sistema de quotas.

Milhares de empresas e o Poder Público já estão na ilegalidade; os egressos substituirão uma outra quota: a dos que perderem o emprego

Um dos pontos mais risíveis desse decreto, inacreditável, é que ele entrou em vigor na data em que foi  assinado, publicado se preferirem. Como nenhuma empresa que presta serviço a União tinha tal quota em seu quadro de pessoal, todas de um dia para o outro se viram colocadas na ilegalidade. Igualmente, o Poder Público, incapaz de atender o decreto, de disponibilizar egressos…(já vimos essa estória no caso dos deficientes), incidiu ele também na ilegalidade. O mínimo que teria que ser previsto era um prazo razoável para atender as exigências do decreto, algo elementar que não foi previsto, mostrando o nível inacreditável de irresponsabilidade.

Um dos conflitos que se terá pela frente será a necessidade de se adequar os contratos existentes, pois se as empresas que prestam serviços terão que demitir e pagar indenizações a uma quota de funcionários, para contratar outra, treiná-los minimamente, haverá custos, que devem ser pagos pelo Poder Público, tanto com o custo de administrar toda a burocracia exigida pelo Decreto. Ou seja, fazer o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos.

A causa dessas aberrações

Além do desconhecimento total de certos homens públicos da realidade de uma empresa, alguns nunca passaram um dia em seu interior, está claro que essas quotas são aprovadas por serem analisadas em separado, e em épocas diferentes. Assim, parlamentares ou autoridades examinam determinada realidade e então aprovam a quota, deficiente, aprendiz, egresso do sistema penitenciário, em separado. Isoladamente podem ser absorvidas, tudo parece politicamente correto, suportável com algum esforço. Passam alguns anos e aprovam outra, e agora uma terceira. Quem sabe outras virão. O fato é que caberia ao legislador ter uma visão global desses fatos e leis, em vez de focar apenas na norma, ver suas consequências quando somadas às outras, o que não acontece.

Essa deficiência dos políticos, o excesso de regulação, de burocracia, de documentos,  está inviabilizando a administração de muitas empresas, tornando insuportável a gestão de recursos humanos, de produção, tumultuando, aumento insuportavelmente custos, tornando um verdadeiro inferno o que antes era simples é ágil. Reitere-se custos que vão sempre parar no produto ou serviços e são pagos pelo consumidor. Muitas dessas normas não passam de transferência de serviços que antes eram públicos para as empresas, sem nunca reduzirem impostos. Isto tem sido comum inclusive nas áreas da saúde, educação, segurança, etc.

Cumpre acrescer que o Poder Público nunca faz sua parte. Isto fica claro na imposição de quotas de deficientes, o governo deixou de cumprir todas as obrigações que lhe cabia, prepara-los para o trabalho, apontar onde poderiam ser encontrados e etc. Com este decreto, se mantido, deverá acontecer a mesma coisa.

A generalização, outra irresponsabilidade

Como no caso de aprendizes, deficientes e em tantas outras ocasiões, a lei é absolutamente genérica, aplica-se a todos os setores da vida econômica, indo de encontro a realidades existentes, até em contradição com outras leis.

Exemplo frisante está na área da segurança privada, onde lei federal diz que para o vigilante exercer a profissão, deve fazer um curso de profissionalização e para entrar nesse curso, deve apresentar atestado de idoneidade imaculado, situação, aliás, que deve ser mantida. Essas condições são fiscalizadas pela Polícia Federal e Ministério da Justiça. Terão as empresas que desobedecer a lei para cumprir o Decreto? Por outro giro, é razoável ter enormes contingentes de presidiários circulando no interior dessas empresas, que muitas vezes possuem milhares de armas no estoque, ou milhões de reais sob guarda? Ou enviar esses homens armados para fazer segurança de agencias bancárias, no transporte de valor?

Na área de prestação de serviços terceirzados também poderá haver conflitos, pois as empresas que prestam serviços em outras, tomadoras, já tentam enviar aprendizes, deficientes e etc, sem sucesso. Estas alegam que já tem que contratar quotas e adequar ambientes, treinar funcionários etc, para ajudar na adaptação. Aceitarão agora mais esses trabalhadores? Não seria interessante excluir terceirizadas, empresas de mão de obra intensiva? Como essas empresas, que tem pequenos contingentes administrativos, poderão acolher tantos trabalhadores do sistema de quotas, muitos impossibilitados de se deslocarem e trabalharem em ambientes de tomadoras?

Flagrante irresponsabilidade

Esse Decreto não merece respeito sob qualquer ponto de vista, pois suas consequências sociais, políticas, jurídicas, econômicas, são perversas, equivocadas, tendo em vista todo o exposto.

O que ele pode deixar de positivo é a conclusão que o Poder Público deve pensar duas vezes e se possível parar de atormentar, aumentar custos, criar riscos, a gestão das empresas. Deve no mínimo discutir com as mesmas e a sociedade uma norma antes de aprova-la. Não se nega a possibilidade das empresas contribuírem com a solução de problemas sociais, mas que isso se deve fazer com obediência aos princípios da razoabilidade, da  proporcionalidade, da legalidade, da preservação do direito à gestão de seus negócios, a sua sobrevivência. Que fique claro que a maioria dos problemas não será resolvida transformando empresas em instrumentos para contratar quotas, solucionar problemas do Estado, mas pelo desenvolvimento econômico, aumento e distribuição de renda, produtividade, competitividade. E para isso não se pode confundir a adequação da responsabilidade social com filantropia.

Fonte Cebrasse

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